segunda-feira, 28 de março de 2011

Um decretão para “ajeitar” o SUS

por Marinilda Carvalho, jornalista aposentada, ex-editora (2003-2009) da Radis, revista de comunicação em saúde da Ensp/Fiocruz

O governo federal “apronta” um decreto para regulamentar a Lei 8.080, de 1990, a que criou o Sistema Único de Saúde. Não tenho a íntegra do documento, que ao que se sabe a presidenta Dilma Rousseff deve assinar no dia 7 de abril – se nada ocorrer até lá. Espero que “algo” ocorra até lá porque, pelo trecho que circula na rede, com observações do conselheiro Francisco Júnior, a abertura para a terceirização e a privatização está configurada. Até porque o PLP 92/2007, que permite a criação defundações estatais de direito privado em várias áreas (saúde, cultura, esportes, ciência e tecnologia, meio ambiente) jaz esquecido no Congresso d evido à maciça reação contrária das entidades de trabalhadores, especialmente do SUS.
Estamos vivendo momento grave de definição de rumos do SUS. Os sinais não são bons.
Abaixo, os artigos e as observações de Júnior (em itálico).
Agradecimentos a @mariolobato

Decreto que regulamenta dispositivos da Lei 8.080, de 1990 e dá outras providências
Art. 4º. A direção do Sistema Único de Saúde é única...
§ 2º A direção estadual do SUS compete ao Estado, cabendo-lhe elaborar normas suplementares às nacionais para atender as necessidades regionais e ordenar o SUS em sua região estadual em conjunto com os seus municípios.
Obs. Carta branca para estados elaborarem a norma que lhes achar mais conveniente.

§ 3º. Na ausência de normas gerais da União, compete ao Estado elaborar a norma plena até que sobrevenha a norma geral a qual deverá prevalecer sobre a norma especial estadual quando com ela for incompatível.
Obs. Outra carta em branco para os estados legislarem e pior, “até que sobrevenha a norma geral” o que nos permite imaginar que em determinados casos não virá jamais.

§4º. A direção municipal compete ao Município a quem cabe elaborar normas suplementares e complementares às estaduais e federais para atendimento do interesse local e manter-se articulado com os demais municípios, sob coordenação estadual.
Obs. Agora a carta branca é para os municípios.
Todos esses dispositivos permitirão que estados e municípios legislem de forma autônoma sobre aquilo que entenderem que não está devidamente esclarecido na legislação federal, inclusive e particularmente para nós, na complementaridade privada e nas chamadas “parcerias de gestão”. Para nós, analisando a legislação de forma criteriosa e com isenção, não há qualquer dúvida sobre uma e outra, mas eles fazem sempre a interpretação que lhes interessam. Esses parágrafos resolveriam a princípio, a situação de uma vez por todas, mesmo violentando a legislação quando fosse do interesse deles.

Art. 6º Os colegiados interfederativos são instâncias de deliberação consensual dos entes federativos para definição da competência, organização e funcionamento das ações e serviços de saúde integrados em rede interfederativa de caráter nacional, estadual e regional, conforme disposto nos artigos 8º e 7º, XI, da Lei 8.080, de 1990.
Obs. E qual o papel dos conselhos de saúde nessas deliberações consensuais? Sobraria algum?
Art. 9º São atribuições dos colegiados interfederativos de âmbito nacional:

I – DECIDIR TODOS OS ASPECTOS OPERACIONAIS, FINANCEIROS E ADMINISTRATIVOS DA GESTÃO COMPARTILHADA DO SUS EM REDE INTERFEDERATIVA, de acordo com a definição da política de saúde dos entes federativos, consubstanciadas em planos de saúde, aprovados pelos conselhos de saúde.
Obs. É a primeira vez no decreto, que os conselhos de saúde são citados e de uma maneira bastante óbvia. O problema reside na dimensão estupidamente amplificada dos poderes de decisão dos colegiados, inclusive e a partir das diversas interpretações que poderão advir do conteúdo dos “planos de saúde aprovados pelos conselhos de saúde”.

II – definir diretrizes, de âmbito nacional, regional e intermunicipal, a respeito da organização das redes de atenção à saúde, principalmente no tocante à sua governança institucional e a integração das ações e serviços dos entes federativos.
. O pObsapel estabelecido hoje na legislação de definição das diretrizes pelos conselhos e pelas conferências de saúde passa a ser exercido pelos colegiados interfederativos.

Art. 14. A padronização dos medicamentos e fixação de protocolos clínicos de cumprimento em âmbito nacional compete ao Ministério da Saúde, de acordo com diretrizes do colegiado interfederativo tripartite e apreciação do Conselho Nacional de Saúde...
Obs. De deliberativo, o Conselho Nacional de Saúde, e por extensão todos os conselhos de saúde, passam a ser “apreciativos” na matéria em tela, com os naturais riscos inerentes dessa interpretação, passar a valer também para todos os demais temas.

Art. 17. O SUS fornecerá o medicamento que cumulativamente:
§ 2º. PODERÃO SER CREDENCIADAS FARMÁCIAS E DROGARIAS PARA FORNECIMENTO DOS MEDICAMENTOS QUE INCUBE AO SUS.
Obs. Passaram de todos os limites no que diz respeito à privatização da assistência farmacêutica. Até os medicamentos que “incubem ao SUS”, passam a ser financiados no setor privado. Não falta mais nada, portanto.

Art. 33. Consideram-se as ações e serviços de saúde:
XV - atos administrativos considerados como atividade-meio, realizados pelos órgãos de saúde no âmbito do SUS, e necessárias à execução das ações indicadas nos incisos desse artigo.
Obs. Regulamentam definitivamente a terceirização daquilo que eles entendem como sendo áreas meio, como nutrição, cooperativas médicas, dentre outros, e que hoje sofrem sérias contestações judiciais e políticas.

Art. 43. A participação complementar do setor privado na saúde pública deverá ter como pressuposto a insuficiência de serviços públicos capazes de garantir a integralidade da assistência à saúde do território do ente federativo.
Obs. Essa redação não existe na lei 8.080/90. É perigosíssima, porque atende exatamente aos argumentos apresentados por gestores em relação, por exemplo, à lei de responsabilidade fiscal e nos casos em que médicos se negam a se submeter a concursos públicos, sendo a terceirização apontada por eles então como solução para ambos os casos.

Art. 44. A participação complementar tanto poderá destinar-se à formação de vínculo de cooperação, colaboração e parceria entre o poder público e o setor privado sem finalidade lucrativa, como destinar-se à contratação de serviços com entidades lucrativas, mediante licitação, devendo ser respeitada a preferência das entidades privadas sem finalidades lucrativas nos processos de cooperação, colaboração e parceria.
Obs. O objetivo desse dispositivo é de definitivamente legitimar e institucionalizar termos que hoje eles utilizam para justificar a privatização do SUS, quais sejam cooperação, colaboração e parceria, que também não constam em nenhum dispositivo da lei 8.080.

§ 1º Para atender o interesse público e a organização do SUS em redes de serviços, poderá ser realizado chamamento público para o estabelecimento de contrato de credenciamento universal com as entidades privadas com e sem fins lucrativos.
Obs. CONTRATO UNIVERSAL? Nem mesmo eles sabem o que é isso (será?), como está provado no próximo parágrafo.

§ 2º O credenciamento universal (outro conceito que precisa ser definido - essa observação é deles próprios) poderá abranger serviços privados de assistência à saúde prestados em consultórios por profissionais de saúde necessários a complementar a ausência de serviços de saúde, em especial os de especialidade de difícil manutenção no âmbito do SUS ou para diminuir as filas em hospitais e unidades públicas de saúde.
Obs. Acho que não é preciso escrever mais nada. Já pensaram nisso? Não têm limite para a privatização. Até para os consultórios particulares! Inacreditável! E sempre com o discurso falacioso de garantir o acesso.

§ 3º O regime de complementaridade poderá prever ainda a execução conjunta de serviços públicos de saúde com compartilhamento de bens, pessoal, material e recursos, sempre com a finalidade de aperfeiçoamento do desenvolvimento do SUS, devendo ser firmado contrato de cogestão e assinatura dos competentes termos de permissão de uso do bem público.
Obs. Para quem achava que não viria, aí está. Com todas as letras, a institucionalização da terceirização da gestão com todos os tipos de “parceiros” possíveis e imagináveis, uma vez que não existe no texto qualquer restrição nesse sentido. Dessa vez com o eufemismo da “execução conjunta” que na verdade é de uma dissimulação que envergonha.
O público entra com o dinheiro, com os bens e com o material e o privado entra com a “permissão da gestão”. É o que eu classifico de capitalismo sem risco praticado no SUS. Na verdade, e os fatos mostram claramente, é bem pior que isso.
Feito o questionamento sobre a necessidade ou não de submeter aos conselhos de saúde os processos referentes à complementaridade privada, houve a seguinte manifestação:
“Entendo que o conselho não participa da gestão mas sim da definição da política de saúde e acompanhamento de sua execução. É o que está na lei. Essa coisa de conselho participar da gestão administrativa, sou contra. Nem o colegiado deve decidir isso. Como o ente federativo vai gerir os seus serviços previstos na sua responsabilidade (que está no contrato de ação pública) é problema dele. Senão vamos acabar com a autonomia federativa”.
Obs. Há uma defesa ferrenha da autonomia do ente federado para fazer aquilo que achar melhor para a sua rede, frequentemente independente da legislação, e se “desconhece” o papel dos conselhos de deliberarem inclusive sobre os aspectos financeiros. E até onde sabemos, contratos de terceirização de gestão envolvem aspectos financeiros.

Art. 46. Poderá ser instituído um regime especial de complementaridade dos serviços públicos de saúde em relação aos hospitais universitários, de acordo com normas gerais expedidas pelo Ministério da Saúde.
Obs. Querem estender os tentáculos para os Hospitais Universitários, também.

Francisco Júnior
***

Complemento das observações de Francisco Júnior
Temos que ter bem claro que o cerne do método utilizado pelos elaboradores do decreto está em propor determinadas redações que, de tanta ambiguidade, acabam legitimando praticamente tudo que eles defendem e que entendemos como sendo lesivo ao SUS e à sua própria legislação.
É o que acontece em relação ao Sistema Nacional de Auditoria (...). Em alguns artigos propostos, está tudo bem. Em outros, no entanto, a porta fica escancarada para um cerceamento evidente das ações do Denasus. Exemplos:
Art. 59. O controle das ações e serviços de saúde deverá respeitar o disposto na Constituição, em leis específicas e neste decreto, devendo observar as seguintes diretrizes:
I - supressão de controles meramente formais ou cujo custo seja evidentemente superior ao risco;
Obs. Esse inciso pode simplesmente inviabilizar, se houver a decisão política, qualquer ação do Denasus.

IV - predomínio da verificação de resultados em relação a processos;
Obs. Um caso clássico e indiscutível de que "os fins justificam os meios". Um absurdo!

VI - impedir sobreposição de competências e de instrumentos de controle;
Obs. Qualquer ação de "fiscalização" do executivo impediria literalmente, a ação do Denasus.

VIII - dever, para os órgãos de controle interno, de verificação da existência de alternativas compatíveis com as finalidades de interesse público dos atos ou procedimentos que sejam por eles impugnados;
Obs. Isso me permite interpretar como defesa do célebre "jeitinho brasileiro" que acaba historicamente desaguando na impunidade que, infelizmente sabemos bem, tem sido a regra.
Parágrafo único. Os órgãos do sistema de auditoria do SUS devem observar o disposto neste decreto.
Obs. Para nós, devem observar a legislação maior, a lei orgânica do SUS.
Uma outra coisa em dissonância com a nossa proposta de serviço civil, que defendemos como obrigatório e para todos os profissionais de saúde, é a que está apresentada pelo governo:

Art. 48. O Ministério da Saúde fica autorizado a manter parcerias com as universidade públicas e privadas para desenvolver programas de prestação de serviços, durante o prazo mínimo de um ano, de médicos recém-formados, após o término da residência médica ou durante a sua realização em município carente, 

DEVENDO SER GARANTIDA REMUNERAÇÃO COMPATÍVEL COM A DIFICULDADE DO ACESSO.
Obs. Continua o aprofundamento da cultura do modelo médico centrado e do equívoco de avaliação de que a dificuldade de lotação de profissionais se dá apenas em "municípios carentes" e para profissionais médicos.
No mais, espero ter contribuido para o debate.
AbraSUS.
Júnior

Observação: peço desculpas por publicar uma coluna tão perto da anterior, mas o assunto é tão grave quanto urgente.


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